No país dos horrores

Ao contrário da maioria das outras crianças, eu nunca gostei da Alice no país das maravilhas. Parecia-me um autêntico pesadelo.

Começar por cair num poço muito fundo, em que ficou sem qualquer sustentação, encontrar-se com criaturas absurdas durante todo o tempo em que decorre a história, não ter qualquer lógica nem sentido aquilo que lhe diziam ou as ameaças que lhe faziam, o absurdo de ser confrontado com uma pena de morte sem que nada tenha feito, ser obrigado a seguir sempre sem saber para onde ia, é tudo aquilo que eu não queria nunca encontrar na minha vida.

Mas como era ponto assente de que a Alice no país das maravilhas era uma história maravilhosa, guardei para mim este pensamento, evitei ler o livro, ver o filme e nunca comentar o tema.
Ao fim de todo este tempo que levo de vida, quem me poderia dizer que me iria sentir viver dentro do país que a Alice viveu, que me continuam a dizer que é das maravilhas, mas que a mim continua a parecer-me um muito mau pesadelo.

Vivo num país em que os políticos são uma mistura entre o coelho atrasado e a rainha de copas. No meio da tempestade propõem que tomemos um chá, na mesa do chapeleiro louco, com uma aparência de calma que não entendemos e, de repente, mandam-nos correr em determinado sentido sem que seja claro qual o resultado dessa decisão.

A rainha de copas decide e contra decide, sobre o aeroporto, a TAP, as escolas, a habitação e a fiscalidade.

O coelho sempre aflito e sem sentido dá o caráter a estas decisões.

Por trás de tudo isto está sempre aquele gato enorme com um sorriso irónico que nos deixa sempre sem saber qual será o próximo conluio em que vamos cair.

Finalmente a lagarta, de Belém, vai tentando ajudar a Alice a adaptar-se a este irrealismo absurdo, mas o absurdo é tal que a pobre lagarta tem muita dificuldade em cumprir este papel.

Um país em que os professores não dão aulas, em que os transportes não transportam, em que os médicos saem constantemente dos hospitais, em que se pode ser condenado apenas por dizer que um senhor é um senhor e que uma senhora é uma senhora e que todos temos direito a ter uma raça, em que as empresas são condenadas por terem lucros, em que as pessoas são tributadas em mais de 60% dos seus rendimentos, em que os pobres são considerados como incapazes e, por isso, são pagos para não fazer nada, em que os que roubam não são presos… enfim, tenho que reconhecer que, na perspetiva da Alice, este é mesmo o país das maravilhas.

Sinto-me de volta à minha infância e volto a ter receio de me manter dentro deste pesadelo.
Mas o pior é que por mais que me belisque não consigo acordar.

Continuo à espera que me acordem para tomar o chá e conseguir assim fugir do ataque que me fazem os soldados da rainha que me querem apanhar por apenas ser normal defender a sociedade estruturada, promover uma vida digna de cada pessoa e querer que as instituições nos governem com o respeito e cuidado para que possamos ser mulheres e homens de boa vontade e promotores do Bem Comum.

Tenho, ainda assim, uma grande esperança.

Nunca a Alice deixou de ser acordada de todas as vezes que fui ler o fim do livro…

Artigo originalmente publicado em Diário de Notícias no dia 17/03/2023